quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

365 days writing: You're Gone / Partida

365 DAYS WRITING #8 DIA: UMA HISTÓRIA/CONTO EM SEGUNDA PESSOA

                                                         You're Gone / Partida

  Você deve estar um pouco nervoso agora, mas não, isto não é um sonho. Eu quero te contar algumas coisas, coisas reais, tão reais que doíam, doeram, mas com esforço já não me doem mais. Me diga primeiro, meu amor: você se lembra de mim? De todos meus detalhes, de todas as formas com a qual te olhei, com todos os sinais que te dei? Por favor, apenas me responda em sua mente: o que exatamente você está sentindo agora? Raiva? Tristeza? Medo? Felicidade?

  Você foi meu primeiro amor, você sabe. Nos conhecemos tão jovens que mal tive como conhecer outros amores! Você ocupava meu tempo, minha mente, até mesmo o tempo que deveria ser meu sozinha. Você me sufocava, mas eu gostava, pois sentia que devia estar feliz, quero dizer, nós éramos felizes, não?

  Éramos melhores amigos. Eu me lembro de nós sendo melhores amigos, pelo menos. De eu cantando músicas para você no violão, te ensinando a dançar, te mostrando que não era tão ruim assim se soltar com os outros e fazer novos amigos. Eu lembro das nossas risadas, das nossas piadas e de noites acordada apenas para falar com você. Mas me lembro das coisas ruins, também. Você também se lembra do dia em que me mostrou o vídeo de uma mulher se esfaqueando? De um homem sendo executado? Bem, eu sorri para eles, eu sorri para você sorrir. Mas eu odiei. Eles perturbam algum canto profundo de minha mente, mesmo agora. Você se lembra quando disse que não conseguiria viver sem mim, quando disse que já havia pensado em inúmeras formas de se matar? Eu tive medo. Medo por mim, medo por você. Você tiraria a própria vida se eu o deixasse? Você ainda está vivo, não está? Me diga: você tiraria a minha vida por você?

  A minha vida era sua. Tirar ou não, isto não era uma opção: a todo segundo eu estava com você. Eu respirava você, eu olhava você, eu ouvia você. Eu sonhava por nós, vivia por nós. De manhã ao acordar, de tarde e desde a noite até a parte mais escura da madrugada, eu estava ali conversando com você, mesmo quando haviam outras coisas que exigiam minha atenção. E quando por um momento apenas eu me virava para atender outra pessoa, você reclamava minha atenção e ficava sem falar comigo por algum tempo. Dizia que doía quando meus cinco minutos de demora o faziam sentir solitário – quando nem mesmo eu te dava atenção. Quando isso acontecia, doía em mim as horas que você passava me ignorando e tratando com grosseria.

  Eu acredito que tinha uma possibilidade de vida, no fim. Eu fazia teatro, tirava boas notas, tinha amigos. Você não gostava deles, não é? Dizia que eu perdia tempo no teatro, que as pessoas que estavam ali eram falsas e vazias por dentro e que iriam me contaminar – você as julgava por serem populares de mais. Eu sempre respondia com uma pergunta: o que você pensaria de mim, caso não me conhecesse a tempo? Eu seria vazia também? Eu nunca te disse, mas há mais para se ver em uma pessoa além da popularidade. Todos temos algo para esconder nos olhos, lá no fundo, naquele brilho quase imperceptível. Eu nunca encontrei o que você escondia.

  Você se lembra do dia em que toquei Os Incríveis enquanto esperava começar minhas aulas de teatro? Lembra-se como cantei para você ou ao menos da conversa que tivemos?

- Não era belo, mas mesmo assim... Havia mil garotas sim! Cantava Help and Ticket to Ride-- O que foi?

  Você estava tão distante aquele dia. Não me olhava cantar como antes, não sorria. Eu tinha meus problemas também. Havia brigado com minha melhor amiga e estava com problemas com um cara idiota da sala. Eu estava destruída por dentro, me sentia enganada, havia sido magoada pelas pessoas que gostava e estava psicologicamente exausta. Mas eu estava lá para você, eu era forte por você. Você sabia de tudo isso, eu te contava tudo por mensagens enquanto não nos víamos. Você sabia o quanto eu precisava de você.

- Nada, continua...

- Ei, fala comigo. Está tudo bem? - eu larguei o violão para você, por você, e te abracei do jeito que você gostava que eu fizesse.

- Estou bem. É só que... Ah, não sei. As vezes as coisas parecem não fazer tanto sentido. Essas brigas suas, minhas relações lá em casa... O ser humano é terrível, Ana. Nós só pensamos em nós mesmos. Estamos aqui para que, afinal? Isso me machuca, de certa forma... As pessoas pregam amor, mas não olham pelo outro.

- Por isso temos que fazer a diferença – sorri. Você balançou a cabeça.

- Eu sou horrível, Ann. Eu... Eu não sei, eu vejo as coisas e não consigo sentir nada, entende? Eu não sei se você entende... Você sente tanto.

- Você sente, sim. Ou não me ama? Você precisa ver mais as coisas da vida, se desprender desse monte de morte que fica vendo no celular – resmunguei. Um som, o sino do colégio avisando o começo das aulas – Eu preciso ir.

- Vamos sair, uma falta não faz diferença. É só teatro, Annie – você pegou minha mão, fazendo a cara que eu temia que fizesse. Mas eu não podia faltar, não no dia de ensaio, então disse não. Quando cheguei em casa havia uma mensagem longa no celular. Você não falou comigo o resto do dia. Você me culpou de não ligar para os seus sentimentos.

  Eu sabia que você fez isso para ficar sozinho. Era tudo para poder pensar, sim, você gostava disso. Mas eu realmente precisava de você aquele dia, e chorei sozinha. Te mandei tantas mensagens! Te culpei de não me dar atenção, de não corresponder ao meu esforço. Você disse que eu era egoísta.

  Eu te odiei um pouquinho, sabe? Por você ser do jeito que é, tão pessimista, tão para baixo. Por você me colocar para baixo. Minhas respostas não foram as melhores, eu sei, mas as suas também não. E a gente terminou assim, por mensagem de texto. Aquela noite eu dormi chorando e chorei na escola, escondida, e na saída, quando esperei você aparecer e se desculpar. Mas você não apareceu. Dias depois você me mandou mensagem, dizendo que não podíamos terminar daquele jeito, que eu era diferente das outras e que me amava. Me diga: você me amou realmente ou era tudo uma mentira para te confortar, para tornar as coisas melhores? Você estava vivendo sozinho um conto de fadas de almas puras e solitárias, ou algum desses clichês góticos? Eu queria te perdoar, mas eu tinha medo e todos me diziam que você era louco. Eu achei que você fosse louco. Eu te disse que você era louco.

  Você disse que devia me matar, depois que era brincadeira. Eu tive medo por todo o caminho de casa até o colégio por uma semana, eu revia mentalmente os videos terríveis que você me mostrava. Você ia me matar? Você poderia me matar, você poderia me ameaçar daquela forma? Eu te amava, eu sabia que a resposta era não – você nunca me faria mais mal do que já havia feito.

  Você destruía minha positividade com suas reflexões. O que eu era? Céus! Qual era o sentido da vida para mim? Eu não tinha perspectiva do meu futuro, não. Quando eu percebi, havia sonhado uma vida para nós, mas nunca havia notado o quanto você me fazia mal. Sim, eu te culpo. Você podia ter percebido antes o quanto eu precisava de mais que videos terríveis, mais que dramas e acusações.

  Você me chamou novamente, mais um pedido de desculpas. Eu aceitei e corri para seus braços, mas você já não era você. O rosto era diferente, estranho, e eu não conseguia te beijar como beijava antes. Meus abraços eram frios. Os sorrisos e palavras, da boca para fora. Eu estava atuando no seu conto de fadas, tentando fazer aquilo parecer certo, mas não era. Você parecia mais cuidadoso: não pegava no meu pé para ficar contigo, não me privava de nada, mas ainda repreendia minhas demoras. Havia uma parede entre nós, mas estávamos tentando – e eu não estava conseguindo.

  Eu não conseguia porque eu já não suportava nem mesmo minha verdade, quanto mais a mentira que existia entre nós. As coisas estavam piorando para mim, você sabe. Eu descobri que meus sonhos eram uma mentira, que eu não era o que devia ser. Eu estava cansada de estar lá apenas por estar – de ouvir palavras vazias e falar apenas o que os outros queriam ouvir. Cansada de não atender as expectativas dos meus pais, nem as suas e nem as minhas.

  Gostaria de saber se alguém viu o pedido de socorro nos meus olhos, se alguém sequer pensou em me ajudar. Você o viu – eu sei que viu. Me perguntou baixinho o que tinha acontecido e eu não quis te preocupar, então você riu e disse que era melhor eu parar de graça porque estava estranha. Foi então que comecei a ir na cobertura do trabalho, quando não havia mais nenhum fumante para me perturbar com suas conversas fiadas. Eu olhava o mundo lá embaixo – eu sentia meu corpo, finalmente, apesar de já não sentir minha mente. Você alguma fez quis sentir minha mente, sob toda a pele que eu lhe ofereci?

  Mas eu nunca pulava, eu não tinha coragem. Eu sabia que, se um dia morresse, teria sido pelas mãos de alguém. Eu não vou ser hipócrita em dizer que não quero acusar ninguém aqui, pois desejo apontar cada um de meus assassinos. Quero dizer de quem foi a mão que me empurrou para o abismo da morte.

  Haviam poucas mãos femininas. Eu podia ver os esmaltes, tão diferentes, eles me sufocavam. Era algo que eu era – mas eu não era! Aquela era a minha mão? Eu posso jurar que minha mão estava ali, você acreditaria? Mas havia também as mãos de Ana, Beatriz, Karol e mais tantas outras com quem meu caminho cruzou. Amigas, mas que não me seguraram forte o bastante. Amigas que me lembravam o que eu tinha que ser, mas que já estava muito fora da linha para alcançar.

  Também haviam ali algumas mãos masculinas, algumas fortes, algumas nem tanto. Mãos que lembravam risadas, mas também momentos duros e solitários. Havia a mão de Carlos, a de Marcos e a de Gabriel, assim como a de meu pai e irmão. Havia a mão do meu chefe e a de cada pessoa boa ou ruim com quem eu interagira na faculdade. Haviam mãos que eu invejava, outras que eu temia. E havia a sua mão. Eu lembro da sua mão, como se ela realmente estivesse ali... mas ela estava, não estava? Diferente das outras, sua mão era quente e real. E havia um braço também, e um ombro, um pescoço e uma cabeça. E um sorriso que mesmo em minha pós-vida não pretendo esquecer. Era um sorriso diferente, como de "eu avisei", como se você estivesse prevendo durante todo este tempo. Como se tivesse ganhado uma aposta. E eu odiei aquele sorriso, céus, como o odiei!

  Eu me lembrei de todo o mal que havia me feito e, naquele momento, todo o bem que vivemos havia sumido. Você era um sanguessuga, uma maldita criatura enviada para me findar a vida. Seu negativismo me abalava e você parecia sequer se importar com o que havia por dentro, por trás de palavras rebuscadas que te agradavam. Saiba agora que há lagrimas sob a poesia, há um coração por trás do poeta e sangue ao redor da musa.

  Eu lutei contra sua mão. Lutei contra você, bati em você, senti você. Eu corri, finalmente deixando para trás tudo aquilo, toda a loucura na qual você havia me jogado. Eu te usei para me levantar enfim, e lhe cuspirei a face quando nos revermos. Você já havia matado minha inocência, já havia matado minha bondade e felicidade, não deixaria levar minha alma.

  Quero que saiba que não te contatei por todo esse tempo porque, apesar de todo o ódio e rancor que o viciado tenha, aquela ainda é sua droga. Sei que você tentaria me reconquistar com sua voz gentil, com seus toques. Por isso, não coloco endereço, não coloco contato. Quero que saiba que sai do abismo onde havia me jogado. Quero que veja, nas fotos junto a carta, o brilho de um sorriso que você quase apagou.

  Eu consegui um emprego em outra cidade e estou morando com parentes, mas em breve vou me mudar novamente. Estou há poucos meses de me formar, aliás. Não vou dizer no que, você não gostaria de qualquer forma. Queria terminar esta carta de uma forma podre, baixa, porém não vou abaixar tanto o nível das nossas lembranças. Eu consegui, eu te superei, eu te venci.

Com amor de sua primeira namorada,

Analiese Butcher.




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