You're Gone / Partida
Você deve estar um pouco
nervoso agora, mas não, isto não é um sonho. Eu quero te contar
algumas coisas, coisas reais, tão reais que doíam, doeram, mas com
esforço já não me doem mais. Me diga primeiro, meu amor: você se
lembra de mim? De todos meus detalhes, de todas as formas com a qual
te olhei, com todos os sinais que te dei? Por favor, apenas me
responda em sua mente: o que exatamente você está sentindo agora?
Raiva? Tristeza? Medo? Felicidade?
Você foi meu primeiro amor,
você sabe. Nos conhecemos tão jovens que mal tive como conhecer
outros amores! Você ocupava meu tempo, minha mente, até mesmo o
tempo que deveria ser meu sozinha. Você me sufocava, mas eu gostava,
pois sentia que devia estar feliz, quero dizer, nós éramos felizes,
não?
Éramos melhores amigos. Eu
me lembro de nós sendo melhores amigos, pelo menos. De eu cantando
músicas para você no violão, te ensinando a dançar, te mostrando
que não era tão ruim assim se soltar com os outros e fazer novos
amigos. Eu lembro das nossas risadas, das nossas piadas e de noites
acordada apenas para falar com você. Mas me lembro das coisas ruins,
também. Você também se lembra do dia em que me mostrou o vídeo de
uma mulher se esfaqueando? De um homem sendo executado? Bem, eu sorri
para eles, eu sorri para você sorrir. Mas eu odiei. Eles perturbam
algum canto profundo de minha mente, mesmo agora. Você se lembra
quando disse que não conseguiria viver sem mim, quando disse que já
havia pensado em inúmeras formas de se matar? Eu tive medo. Medo por
mim, medo por você. Você tiraria a própria vida se eu o deixasse?
Você ainda está vivo, não está? Me diga: você tiraria a minha
vida por você?
A minha vida era sua. Tirar
ou não, isto não era uma opção: a todo segundo eu estava com
você. Eu respirava você, eu olhava você, eu ouvia você. Eu
sonhava por nós, vivia por nós. De manhã ao acordar, de tarde e
desde a noite até a parte mais escura da madrugada, eu estava ali
conversando com você, mesmo quando haviam outras coisas que exigiam
minha atenção. E quando por um momento apenas eu me virava para
atender outra pessoa, você reclamava minha atenção e ficava sem
falar comigo por algum tempo. Dizia que doía quando meus cinco
minutos de demora o faziam sentir solitário – quando nem mesmo eu
te dava atenção. Quando isso acontecia, doía em mim as horas que
você passava me ignorando e tratando com grosseria.
Eu acredito que tinha uma
possibilidade de vida, no fim. Eu fazia teatro, tirava boas notas,
tinha amigos. Você não gostava deles, não é? Dizia que eu perdia
tempo no teatro, que as pessoas que estavam ali eram falsas e vazias
por dentro e que iriam me contaminar – você as julgava por serem
populares de mais. Eu sempre respondia com uma pergunta: o que você
pensaria de mim, caso não me conhecesse a tempo? Eu seria vazia
também? Eu nunca te disse, mas há mais para se ver em uma pessoa
além da popularidade. Todos temos algo para esconder nos olhos, lá
no fundo, naquele brilho quase imperceptível. Eu nunca encontrei o
que você escondia.
Você se lembra do dia em
que toquei Os Incríveis enquanto esperava começar minhas aulas de
teatro? Lembra-se como cantei para você ou ao menos da conversa que
tivemos?
- Não era belo, mas mesmo
assim... Havia mil garotas sim! Cantava Help and Ticket to Ride-- O
que foi?
Você estava tão distante
aquele dia. Não me olhava cantar como antes, não sorria. Eu tinha
meus problemas também. Havia brigado com minha melhor amiga e estava
com problemas com um cara idiota da sala. Eu estava destruída por
dentro, me sentia enganada, havia sido magoada pelas pessoas que
gostava e estava psicologicamente exausta. Mas eu estava lá para
você, eu era forte por você. Você sabia de tudo isso, eu te
contava tudo por mensagens enquanto não nos víamos. Você sabia o
quanto eu precisava de você.
- Nada, continua...
- Ei, fala comigo. Está
tudo bem? - eu larguei o violão para você, por você, e te abracei
do jeito que você gostava que eu fizesse.
- Estou bem. É só que...
Ah, não sei. As vezes as coisas parecem não fazer tanto sentido.
Essas brigas suas, minhas relações lá em casa... O ser humano é
terrível, Ana. Nós só pensamos em nós mesmos. Estamos aqui para
que, afinal? Isso me machuca, de certa forma... As pessoas pregam
amor, mas não olham pelo outro.
- Por isso temos que fazer a
diferença – sorri. Você balançou a cabeça.
- Eu sou horrível, Ann.
Eu... Eu não sei, eu vejo as coisas e não consigo sentir nada,
entende? Eu não sei se você entende... Você sente tanto.
- Você sente, sim. Ou não
me ama? Você precisa ver mais as coisas da vida, se desprender desse
monte de morte que fica vendo no celular – resmunguei. Um som, o
sino do colégio avisando o começo das aulas – Eu preciso ir.
- Vamos sair, uma falta não
faz diferença. É só teatro, Annie – você pegou minha mão,
fazendo a cara que eu temia que fizesse. Mas eu não podia faltar,
não no dia de ensaio, então disse não. Quando cheguei em casa
havia uma mensagem longa no celular. Você não falou comigo o resto
do dia. Você me culpou de não ligar para os seus sentimentos.
Eu sabia que você fez isso
para ficar sozinho. Era tudo para poder pensar, sim, você gostava
disso. Mas eu realmente precisava de você aquele dia, e chorei
sozinha. Te mandei tantas mensagens! Te culpei de não me dar
atenção, de não corresponder ao meu esforço. Você disse que eu
era egoísta.
Eu te odiei um pouquinho,
sabe? Por você ser do jeito que é, tão pessimista, tão para
baixo. Por você me colocar para baixo. Minhas respostas não foram
as melhores, eu sei, mas as suas também não. E a gente terminou
assim, por mensagem de texto. Aquela noite eu dormi chorando e chorei
na escola, escondida, e na saída, quando esperei você aparecer e se
desculpar. Mas você não apareceu. Dias depois você me mandou
mensagem, dizendo que não podíamos terminar daquele jeito, que eu
era diferente das outras e que me amava. Me diga: você me amou
realmente ou era tudo uma mentira para te confortar, para tornar as
coisas melhores? Você estava vivendo sozinho um conto de fadas de
almas puras e solitárias, ou algum desses clichês góticos? Eu
queria te perdoar, mas eu tinha medo e todos me diziam que você era
louco. Eu achei que você fosse louco. Eu te disse que você era
louco.
Você disse que devia me
matar, depois que era brincadeira. Eu tive medo por todo o caminho de
casa até o colégio por uma semana, eu revia mentalmente os videos
terríveis que você me mostrava. Você ia me matar? Você poderia me
matar, você poderia me ameaçar daquela forma? Eu te amava, eu sabia
que a resposta era não – você nunca me faria mais mal do que já
havia feito.
Você destruía minha
positividade com suas reflexões. O que eu era? Céus! Qual era o
sentido da vida para mim? Eu não tinha perspectiva do meu futuro,
não. Quando eu percebi, havia sonhado uma vida para nós, mas nunca
havia notado o quanto você me fazia mal. Sim, eu te culpo. Você
podia ter percebido antes o quanto eu precisava de mais que videos
terríveis, mais que dramas e acusações.
Você me chamou novamente,
mais um pedido de desculpas. Eu aceitei e corri para seus braços,
mas você já não era você. O rosto era diferente, estranho, e eu
não conseguia te beijar como beijava antes. Meus abraços eram
frios. Os sorrisos e palavras, da boca para fora. Eu estava atuando
no seu conto de fadas, tentando fazer aquilo parecer certo, mas não
era. Você parecia mais cuidadoso: não pegava no meu pé para ficar
contigo, não me privava de nada, mas ainda repreendia minhas
demoras. Havia uma parede entre nós, mas estávamos tentando – e eu
não estava conseguindo.
Eu não conseguia porque eu
já não suportava nem mesmo minha verdade, quanto mais a mentira que
existia entre nós. As coisas estavam piorando para mim, você sabe.
Eu descobri que meus sonhos eram uma mentira, que eu não era o que
devia ser. Eu estava cansada de estar lá apenas por estar – de
ouvir palavras vazias e falar apenas o que os outros queriam ouvir.
Cansada de não atender as expectativas dos meus pais, nem as suas e
nem as minhas.
Gostaria de saber se alguém
viu o pedido de socorro nos meus olhos, se alguém sequer pensou em
me ajudar. Você o viu – eu sei que viu. Me perguntou baixinho o
que tinha acontecido e eu não quis te preocupar, então você riu e
disse que era melhor eu parar de graça porque estava estranha. Foi
então que comecei a ir na cobertura do trabalho, quando não havia
mais nenhum fumante para me perturbar com suas conversas fiadas. Eu
olhava o mundo lá embaixo – eu sentia meu corpo, finalmente,
apesar de já não sentir minha mente. Você alguma fez quis sentir
minha mente, sob toda a pele que eu lhe ofereci?
Mas eu nunca pulava, eu não
tinha coragem. Eu sabia que, se um dia morresse, teria sido pelas
mãos de alguém. Eu não vou ser hipócrita em dizer que não quero
acusar ninguém aqui, pois desejo apontar cada um de meus assassinos.
Quero dizer de quem foi a mão que me empurrou para o abismo da
morte.
Haviam poucas mãos
femininas. Eu podia ver os esmaltes, tão diferentes, eles me
sufocavam. Era algo que eu era – mas eu não era! Aquela era a
minha mão? Eu posso jurar que minha mão estava ali, você
acreditaria? Mas havia também as mãos de Ana, Beatriz, Karol e mais
tantas outras com quem meu caminho cruzou. Amigas, mas que não me
seguraram forte o bastante. Amigas que me lembravam o que eu tinha
que ser, mas que já estava muito fora da linha para alcançar.
Também haviam ali algumas
mãos masculinas, algumas fortes, algumas nem tanto. Mãos que
lembravam risadas, mas também momentos duros e solitários. Havia a
mão de Carlos, a de Marcos e a de Gabriel, assim como a de meu pai e
irmão. Havia a mão do meu chefe e a de cada pessoa boa ou ruim com
quem eu interagira na faculdade. Haviam mãos que eu invejava, outras
que eu temia. E havia a sua mão. Eu lembro
da sua mão, como se ela realmente estivesse ali... mas ela estava,
não estava? Diferente das outras, sua mão era quente e real.
E havia um braço também, e um ombro, um pescoço e uma cabeça. E
um sorriso que mesmo em minha pós-vida não pretendo esquecer. Era
um sorriso diferente, como de "eu avisei", como se você
estivesse prevendo durante todo este tempo. Como se tivesse ganhado
uma aposta. E eu odiei aquele sorriso, céus, como o odiei!
Eu
me lembrei de todo o mal que havia me feito e, naquele momento, todo
o bem que vivemos havia sumido. Você era um sanguessuga, uma maldita
criatura enviada para me findar a vida. Seu negativismo me abalava e
você parecia sequer se importar com o que havia por dentro, por trás
de palavras rebuscadas que te agradavam. Saiba agora que há lagrimas
sob a poesia, há um coração por trás do poeta e sangue ao redor
da musa.
Eu
lutei contra sua mão. Lutei contra você, bati em você, senti você.
Eu corri, finalmente deixando para trás tudo aquilo, toda a loucura
na qual você havia me jogado. Eu te usei para me levantar enfim, e
lhe cuspirei a face quando nos revermos. Você já havia matado minha
inocência, já havia matado minha bondade e felicidade, não
deixaria levar minha alma.
Quero
que saiba que não te contatei por todo esse tempo porque, apesar de
todo o ódio e rancor que o viciado tenha, aquela ainda é sua droga.
Sei que você tentaria me reconquistar com sua voz gentil, com seus
toques. Por isso, não coloco endereço, não coloco contato. Quero
que saiba que sai do abismo onde havia me jogado. Quero
que veja, nas fotos junto a carta, o brilho de um sorriso que você
quase apagou.
Eu
consegui um emprego em outra cidade e estou morando com parentes, mas
em breve vou me mudar novamente. Estou há poucos meses de me formar,
aliás. Não vou dizer no que, você não gostaria de qualquer forma.
Queria terminar esta carta de uma forma podre, baixa, porém não vou
abaixar tanto o nível das nossas lembranças. Eu consegui, eu te
superei, eu te venci.
Com
amor de sua primeira namorada,
Analiese
Butcher.
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