sábado, 7 de janeiro de 2017

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Sombras, grandes sombras por todo o caminho. Um poste de luz enfraquecido iluminava de forma solitária a rua, o vento balançando suavemente o capuz da jovem que terminava de virar a esquina. Ela havia virado no exato momento em que ele saia pelo portão do prédio - e ainda que estivessem na mesma calçada, indo de encontro um com o outro, nenhum de fato notou a presença do outro.
A música no fone de ouvido dela tocava alta e seus lábios moviam-se despreocupadamente seguindo a letra da canção. Seus olhos estavam baixos, ora olhava para o chão, então continuava a ler algo em seu celular, seu andar era ritmado: seus allstars moviam-se de forma curiosa, infantil e graciosa, como em pequenos saltitos para controlar uma dança - e, de fato, sua cabeça movia-se de um lado ao outro suavemente de forma ritmada.
Quando ele finalmente parou de arrumar algo em sua bicicleta e prestou mais atenção no caminho, avistou a garota de capuz e não deixou de sorrir um pouco. Parando, subiu em sua bicicleta e passou para a rua sentindo seus cabelos negros agitarem-se para trás conforme ganhava velocidade. A música eletrônica tocava baixa em seu headphone por trás da voz feminina com quem conversava, voz esta que era sua motivação para estar saindo àquela hora. Enquanto a garota monologava a respeito de um curso de francês, Léo não deixava de imagina-la, delirar com a pseudovisão de seus radiantes olhos azul-claros entreabertos e seu sorriso rosado - a garota que sempre sonhara e buscara na faculdade, agora tão perto de si e quase ao alcance de suas mãos!
Aquela seria a noite. Ele apareceria de surpresa na frente de sua casa, a levaria na pizzaria e após uma longa noite de conversas e risadas a pediria em namoro. Distraido em pensamentos, não notou quando a voz cessou.
Retirando o capuz de sua blusa, a garota corou enquanto a bicicleta passava ao seu lado. Alguém a havia visto cantar? Que vergonha! Mas não deixava de sorrir, achando um tanto engraçada a situação - estava animada demais com sua nota máxima em Literatura Portuguesa para se preocupar com alguém aleatório vendo-a cantarolar e saltitar. Quem ligava pra esses vizinhos loucos, afinal! - e tornava a rir baixo com um sorriso fechado.
Sua casa estava apenas a alguns passos: sortuda, o único poste de luz da rua ficava exatamente ao lado do portão de sua garagem, de modo que seu caminho não era tão escuro quanto os que moravam mais ao final da rua - a próxima iluminação estava só na esquina da outra calçada. Já removia os fones, desligando o player de música e pegando as chaves no bolso da blusa quando notou o brilho do metal caído a sua frente. Abaixando-se, recolheu o pingente mediano. Era círcular e único: possuia dois niveis circulares e em seu centro, envolto em um lótus, revelava-se o mantra Om. Enquanto entrava em casa com a peça em mãos, notou o motivo de sua perda: sua argola havia se aberto.
- Leonardo Rodriguez! - a voz aguda e estridente pareceu ecoar no headphone, despertando Léo de seu delírio romantico - Pelo amor de Deus, ainda está vivo aí?
- Desculpa, Ana, vou ter que desligar, aguente aí - ela não respondeu, não teve tempo. Pressionando algum botão no próprio fio do headphone a ligação foi encerrada. Ele podia muito bem imaginar que, a duas quadras dali, ela estava vociferando aos ares de seu quarto sua revolta por ter sido deixada a falar sozinha, e não pode deixar de sorrir por isso. Esperava que ela o perdoasse daquela vez, ao menos.
Número 312, 314, 316... Parou em frente a casa amarela com ares de luxo, o jardim impecável com bichinhos de cerâmica parecendo faze-lo perder a coragem - o que estava fazendo mesmo? Respirou fundo, não. Aquela era a noite! Já faziam dois anos e a cada dia estavam mais próximos... Ele não lembrava bem quando começara a gostar da filha do candidato a prefeito daquela forma e nem quando começara a notar as olhadas um tanto diferentes dela sobre si, mas já faziam quase quatro meses que namoravam sem de fato se namorar. Eram longas encaradas em silêncio, raros momentos em que não se falavam e uma crescente intimidade. Havia sinal maior de relação perfeita?
Bateu palmas, os latidos no fundo da casa e na vizinhança fizeram-se presente cortando o silêncio. A mãe de Ana apareceu na janela pouco depois e, com um sorriso, desapareceu na cortina: quem abriu a porta foi a própria Ana em seu camisão cinza e shorts de pijama, os longos cabelos negros caindo como cascatas em seus ombros.
- Eu devia te deixar plantado aí fora, para ser devorado pelos pernilongos - resmungou, atravessando o jardim.
- E perder a oportunidade de eu te pagar uma pizza? Você não faria isso - sorriu cumplice. Ela mordeu o lábio inferior, parecendo pensar na ideia enquanto abria o portão.
- Podia ter me avisado pelo telefone, aí eu já teria posto uma roupa decente...
- Não vejo nada de indecente nisso que você está vestidindo - retrucou fingindo um misto de decepção e reprovação em sua voz - Pelo contrário, está parecendo quase uma freira, mal posso ver seu joelho - a gargalhada da garota preencheu o jardim ao passo que tomava a mão do rapaz e arrastava-o casa adentro. Esta é a noite, pensava ele, o coração batendo tão forte no peito que temia que todos ali pudessem ouvi-lo. Esta é a noite.
O despertador em formato de cachorro despertou Gabriella em um sobressalto. Que pesadelo havia sido aquele!, resmungou enquanto pressionava um botão no aparelho para que parasse de tocar e vibrar toda a cabeceira de sua cama. Quando enfim criou coragem para levantar, parou na porta e riscou o número do dia correspondente, em seguida avaliando as tarefas que teria que realizar, todas escritas em japonês - foi então que se lembrou: aquele era o dia.
Com o novo ânimo correndo em cada movimento apressado que fazia, riscava cada item ansiosamente tentando lembrar a si mesma que não importava o quão rápido fizesse as tarefas, o horário de lançamento de seu tão almejado novo drama não chegaria mais rápido também - não que tivesse efeito, é claro. Havia esperado aquele único dia por meses e agora sentia-se vibrar por dentro!
Quando o item "buscar o caderno que encomendei" chegou precisou de longos minutos para enfim criar coragem de sair de casa e, quando finalmente seguiu o caminho para o centro da cidade, o sol parecendo perseguir sua pele enquanto esgueirava-se pelas sombras das árvores nas calçadas. Pensava na faculdade, no trabalho que teria que fazer sobre um livro que sequer começara - seus professores achavam que não tinha outros livros para ler, esperando ansiosamente na estante de seu quarto? - e de certa forma já sentia-se mentalmente cansada apenas de imaginar. Havia há pouco apresentado um seminário que a testara com todos os graus de dificuldade imagináveis, desde o livro entediante e longo, os detalhes e pontos complexos exigidos pela professora até sua própria sala de aula. Não era a coisa mais fácil apresentar um seminário de quinze minutos sozinha quando todos estão mais preocupados em discutir sobre boatos de um suposto criminoso que estava atacando a cidade.
Gabrielle estralou a lingua enquanto sua mente rumava para tal coisa que sequer saira no jornal local, mas que apenas ficava na boca do povo em o que já fazia quase dois meses - porém sequer pôde concluir seu raciocínio: um gemido de dor, tão baixo que fez a garota pensar se delirava. Paralisada na calçada, tentou ouvir o som novamente e lá estava ele arrancando um suave calafrio da jovem de cabelos cacheados, desta vez ainda mais baixo, mais parecendo um arfar. Suas pernas apressaram-se mais do que pretendia na direção da voz, o coração batendo rápido dentro do peito, e sua boca abriu-se em um perfeito o quando avistou o rapaz caído, praticamente jogado ao lado da linha do trem.
- Ei! Você está bem? - com o coração disparado, desceu o barranco de gramado, porém não houve resposta. Por um momento, Gabrielle esqueceu como se respirava. Ele estava morto? Com as mãos tremulas e sem conseguir tirar os olhos da figura a sua frente, agarrou o celular.
Quando a luz clara e forte ardeu seus olhos, a primeira coisa que Léo pensou foi "merda" antes de fechar novamente as orbes claras e levar a mão esquerda ao rosto - ou, ao menos, tentar. A dor lancinante atingiu-o como um soco no estômago ao tempo que as memórias voltavam a si com um gosto amargo. Forçou-se a abrir os olhos lentamente. Estava em uma cama de hospital, do seu hospital. Um pequeno sorriso cínico mostrou-se em seu rosto. O silêncio pacífico reinou por algum tempo e ele nada fez além de deixar-se relaxar e observar a cortina que o separava de outra cama - estava em um quarto compartilhado. Ao menos não fora tão grave, afinal. Sentando-se como podia, avaliou seu estado. Alguns arranhões feios nas pernas, seu pulso e mão esquerdos enfaixados e um curativo no joelho que era tão grande que o assustou, ainda que não sentisse nada no local. Um arfar feminino o despertou de seus pensamentos. Parada na beirada de sua cama uma jovem o olhava como se visse um fantasma, fazendo-o erguer uma sobrancelha. Parecendo recompôr-se, a jovem desviou o olhar e apressou-se para a direção de onde viera - ele ainda ouviu ela dizer "ele acordou", seguido de uma movimentação e logo avistou a face preocupada de Ângela.
- Você tem muita coisa pra explicar, doutor - disse a enfermeira de meia idade. Ele deu de ombros e sorriu cinicamente murmurando um "é" vago - E vai precisar de uma ótima desculpa.
- Eu apenas perdi o equilibrio, Ange - mentiu em rouquidão, a mais velha bufando.
- Certo, certo. Você finge que é verdade e nós fingimos acreditar, assim como estamos fazendo há meses - torceu o nariz. Léo precisava mudar de assunto e logo!
- Quem era a garota? - murmurou baixo para que ninguém mais ouvisse enquanto a outra o examinava.
- Ela quem te encontrou todo acabado na beira da linha e chamou ajuda. Aí ela está esperando desde cedo aqui, parece que o delegado quer falar com ela.
- E não falou ainda? - perguntou, mas sabia a resposta. Ângela abriu um sorriso zombeteiro e voltou de onde viera com seu andar tranquilo e quase rastejado. O tédio o pegou em menos de um décimo de segundo e, estralando a língua, sentou-se na beira da cama e apoiou os pés no chão. Seu corpo doía, muito. Sentia seus os músculos de seus ombros quase clamarem por misericórdia, então lembrou-se de como havia caído com tudo de costas no chão... Era extremamente sortudo por não ter quebrado mais que o pulso. Ele até fizera o movimento para se levantar, porém o som de passos em sua direção o segurou. Ela o fitou novamente antes de falar, desta vez seu olhar era mais suave, quase terno. Quase.
- Quando te achei, eu realmente não esperava que acordasse em menos de doze horas - comentou com sinceridade mais para si mesma. Ele de fato parecia bem melhor agora, reparou, e não pôde deixar de reparar mais uma vez o quanto o homem era atraente. Não era tão novo, mas também não era velho. Deveria ter o quê? Trinta anos? Não lhe dava mais que trinta e cinco e tinha a certeza de que se sua barba não estivesse por fazer não lhe daria mais que trinta.
- Eu estava tão deplorável assim? - riu. A risada dele é bonita também, pensou, em seguida condenando-se por ter tais ideias e abrindo um sorriso.
- Bem... Digamos que você estava de um jeito estranho e sua mão não estava lá de uma forma humanamente possível... - resumiu contraindo os lábios e desviando o olhar. Ele estava muito pior do que ela descrevera. Além de estar caído de uma forma bizarra como um boneco de pano e de sua mão quase ter lhe dado ansias por si só, Gabrielle não sabia dizer o que eram cortes e o que era sujeira. Era como se o rapaz houvesse acabado de retornar de um campo de guerra: suas roupas estavam empoeiradas e com sutis rasgos, seu rosto e pele igualmente sujos de terra e sangue seco. Ele reprimiu uma careta e sorriu.
- E então há você, minha salvadora - por um momento, por um rápido momento, uma fração de segundos, ele havia ronronado aquelas palavras? Gabrielle piscou, um tanto atônita, e sentiu as bochechas queimarem. Devia estar imaginando coisas. Ele abaixou o olhar por um momento, então voltou a fita-la de forma amistosa - Eu sou Leonardo.
- Gabrielle - disse timidamente, desviando o olhar. Ele sorriu novamente e se levantou, reprimindo uma expressão de dor - Ei, cuidado! Você deveria descansar um pouco, a-acho - enrolando-se nas palavras, o olhar curioso do homem a sua frente a fez recuar. Ele balançou a cabeça e sorriu de canto, então parando seu olhar sobre algo que não necessariamente era alguma coisa.
- Se vão te fazer esperar, ao menos que não seja nesta parte do hospital.
Sentindo o corpo arder a cada passo e seus ombros reclamarem a dor, Léo sentiu o olhar de sua salvadora sobre suas costas enquanto andavam lentamente até a sala de repouso. Quando chegaram, ela fez questão de pegar café para os dois por conta própria, apesar de suas tentativas de convence-la de que podia e sentia-se em cordial obrigação de fazer isso sozinho. A sala não era grande: apenas um sofá de três lugares e duas poltronas ao redor de uma mesa de centro repleta de inumeras revistas aleatórias, uma copa minúscula e alguns armários.
Dolorosamente alongando as costas como podia em sua poltrona, permitiu-se organizar as memórias que mais pareciam fragmentos embaçados. Lembrava-se de entrar na casa de Ana Silvino e subir com ela para seu quarto sob olhares nada legais de seu pai. Lembrava-se dela o deixar sentado sobre sua cama de casal enquanto ela ia se vestir e também que ela o acompanhara até a pizzaria com um maravilhoso - e decotado - vestido listrado. Eles conversaram, eles riram, eles fizeram o pedido da pizza e de bebidas, ela disse que ia ao banheiro.
Foi então que a noite ficou estranha. Ele saiu da pizzaria... Por que ele saiu? Não lembrava, mas sabia que era algo a respeito de sua bicicleta, pois lembrava de um homem falar com ele quando ainda estava sentado a espera de Ana. Quando saiu para verificar, lembrava-se de ser abordado por um sujeito alto e robusto que nunca vira antes - ele não disse nada, apenas o empurrou para trás violentamente fazendo-o cair e trocou olhares com alguém atrás de si. Olhares que ele definitivamente não gostara. Olhando de canto de olho para trás, para a porta da pizzaria, notou como outro homem observava a cena com a expressão séria. Aquele homem estava com seu agressor, não precisava ser nenhum gênio para chegar a esta conclusão. Léo lembrava-se de tentar chegar a porta para tentar chamar a atenção de alguém, lembrava-se de gritar alguma coisa na esperança de alguém ajuda-lo, porém não se recordava de ninguém ter aparecido.
E então ele correu. Correu o mais rápido que pôde, movendo-se como uma cobra por entre os braços largos e fétidos que tentavam agarra-lo, alcançando a chave da tranca no processo e milagrosamente escapando por segundos. Não sabia como fizera aquilo, não sabia quem eram aqueles homens e nem o que queriam além de machuca-lo. Quando concentrou-se na borracha familiar dos guidões e no aperto firme de suas mãos sobre eles, sentiu-se seguro e pôde respirar com mais tranquilidade, mesmo que ainda sentisse seu coração disparado. Léo lembrou-se que planejava ir para casa, mas que pensara em Ana quase imediatamente e foi forçado a parar a bicicleta e discar o número da garota, mas a chamada foi recusada. Repetiu a discagem. Então tudo parecia um borrão... Um borrão de luzes, gritos, a lembrança da adrenalina enquanto acelerava cada vez mais. Eles o perseguiam, Léo tinha certeza disto, porém não se lembrava como. Moto, carro? Estralou a língua. Lembrava de ter caído. Mas por que caira? Não fazia sentido.
Depois apenas lembrava de sentir dor, muita dor, dor para valer, e de ouvir algumas palavras... Palavras. Foi quando lembrou da garota, Gabrielle, e voltou sua atenção em direção a poltrona onde estava sentada com a vista baixa no celular, a expressão do mais puro e sincero tédio, sentindo-se um tanto culpado pelo silêncio que deixara se estabelecer.
- Você pode ir para casa, se quiser. Pode me dar seu endereço e eu passo para o delegado quando ele chegar.
- Não quero ninguém indo lá em casa, ainda mais da polícia - resmungou - Não acho que ele vá demorar muito mais... - Ele não demoraria tanto se houvesse um cadáver, pensou. Seriam aqueles homens que estavam fazendo as vítimas? Bem, no fim todos estavam no mesmo local, mas em pontos diferentes: a linha do trem.
Gabrielle notou como ele parecia pensativo desde que se sentaram. Seus lábios contraiam-se e sua expressão se fechava em determinados momentos, ainda que ela não soubesse se aquilo era pelo que ocorrera para que ficasse daquele jeito ou se pela dor dos ferimentos que ela ainda julgava horríveis, mesmo já devidamente tratados e cobertos. Ele deveria ter notado o olhar da outra sobre si ou enfim despertado-se de seus pensamentos, pois sua face iluminou-se por um momento e seus olhares se encontraram. Ela ainda o sustentou por alguns instantes antes de desviar, achando-se tola por sentir seu rosto quente. Droga, ele era terrívelmente belo. E aqueles olhos... Céus, quase pegava-se arfando diante daquele tom azul safira circulado por um anel negro. Já vira olhos azuis, mas certamente não chegavam perto da beleza dos do médico.
Ele ainda a encarava, ela podia sentir isto enquanto fingia ver alguma mensagem no celular, e ela ainda sentia seu rosto ardendo. Quando a porta se abriu após duas batidas rápidas, ela ainda lembrou-se de agradecer a todos os deuses que recordava no momento. O delegado era um homem de meia-idade calvo, com um nariz grande e estranhamente fino - e, como Gabrielle notou, vestia uma bota de cowboy um tanto esquisita. Quando finalmente saiu daquele lugar, teve a certeza de que esperara quase três horas para absolutamente nada. Após algumas perguntas clichês como "como você o encontrou?", "que horas eram?", "havia mais alguém?" e "reparou algo de estranho no local ou encontrou alguém suspeito no caminho?" Gabrielle fora liberada para voltar para casa e deixar o médico sozinho com o delegado. Ainda não entendera o que ele perguntou sobre encontrar alguém suspeito no caminho - como saberia que alguém é suspeito, oras.
Resmungando, passou para pegar a encomenda de caderno no caminho e voltou para casa. Sua irmã a olhou com curiosidade quando passou sem falar nada e, fechando a porta do quarto atrás de si, jogou-se na cama. Estava com fome e estava com sono. Virou o rosto no travesseiro e fechou os olhos, as orbes azul sáfira invadindo a escuridão de sua mente como um fantasma.
Quando parou em frente ao portão cinza-escuro uma certa angústia lhe acometeu. Pouco depois que o delegado saira, Léo se tocara que não havia agradecido sua salvadora. Que tipo de pessoa ele era, incapaz sequer daquilo? Bateu palmas, a porta de vidro se abriu algum tempo depois e uma garota espiou por uma fresta antes de abrir totalmente. Ela sumiu de vista, disparando como um raio quando disse quem procurava, e após algo que pareceu a eternidade o rosto conhecido se aproximou. Havia confusão em seus olhos verdes, curiosidade. Curiosidade. Essa era uma coisa que certamente ela despertara nele e ele sequer soubera o motivo.
- Como descobriu onde eu moro? - perguntou na lata. Ele deu seu melhor sorriso amarelo, coçando a nuca.
- Bem, parece que uma das enfermeiras conhece sua mãe - ela acenou em compreensão, então não disse nada, apenas esperou ele dizer o que quer que fosse. Céus, os olhos dela eram realmente muito bonitos! Não notara antes devido as lentes, mas agora via com clareza as brilhantes orbes verde acinzentadas fitando-o de forma séria e impaciente - Eu vim agradecer... Sabe, por ter me salvado. Você deve estar me achando o maior grosso por não tê-lo feito antes - riu com o nariz.
- Para falar a verdade, nem passou pela minha cabeça - piscou.
- Então... - desviou o olhar, erguendo as sobrancelhas enquanto escolhia as palavras - Eu moro aqui do lado... No prédio azul, sabe? É engraçado nunca termos trombado - sorriu. Ela franziu o cenho. Céus, estava se sentindo um idiota! - Então... Bem, obrigado de novo. Se precisar de algo, pode me chamar... Tenho uma dívida com você agora, não? - ela sorriu.
- Não precisa disso tudo, vamos. Você não estava tão acabado assim, garanto que não ia morrer.
- Bem, pela sua descrição eu já estava parecendo um zumbi.
- Ah, acredite, estava mais para aquela garota do Exorcista! Até fiquei em duvida entre chamar a ambulância ou o padre - riram, trocaram mais algumas palavras e ele se foi. Mas, ainda que ele tivesse se afastado da outra, ela ainda estava em sua mente, mesmo quando deitou-se na cama e forçou-se a pensar no ocorrido da noite anterior ela surgia. Ela, sua salvadora.
Estralou a língua, batucando a ponta da caneta em sua agenda aberta. Certo, ela não havia exatamente o salvado, seus ferimentos não eram considerados nada próximos de serem fatais - mas ela combinava bem com o título e ele continuaria a chama-la assim. Com um suspiro profundo, revirou os olhos: estava perdendo tempo. Voltando seus olhos para a página em branco da agenda, começou a marcar horas  e listar o que se lembrava. Algo não estava certo. Em três meses haviam quatro mortos encontrados na linha do trem e um sobrevivente. Por quê, diferente dos outros, ele não havia morrido?
As horas passavam rapidamente. Encarando novamente seu caderno de anotações do trabalho, avaliou as fichas das demais vítimas: a primeira, uma mulher de cinquenta e dois anos que fora encontrada a cerca de 25 metros do prédio da estação ferroviária, jogada de atravessado sobre a linha - havia morrido instantaneamente com um tiro no peito. O segundo era seu marido e fora apenas uma semana depois aos 35 metros de distância do prédio da estação, ao lado da linha: além de um tiro na perna, havia levado quatro facadas nas costas. O terceiro ocorrera um mês depois e foi um choque para todos: era o filho do candidato a prefeiro - era o irmão de Ana, o tão adorado capitão do time de futebol da cidade. Não era um cara de inimigos, Léo o conhecia bem, eram amigos. Julio era calmo e extremamente passivo, ou seja, nem que quisesse entraria em uma briga, além de fazer amigos com grande facilidade. Com a garganta seca, Léo continuou a análise. 30 metros da estação, um tiro a queima roupa...
- Droga - murmurou, o nó formando-se na garganta. Sempre que lia aquilo sentia a mesma coisa, exceto pelo ódio que cada vez mais mostrava-se controlável. Queria encontrar quem fizera aquilo, queria encontrar quem matara seu melhor amigo, precisava encontrar aquela pessoa e Deus sabe-se-lá o que fazer com ela. Ele o havia deixado de forma tão repentina, tão brutal...!
Sabia que haviam o forçado a ir até a linha, um corte fino e uma marca sutil na base de suas costas indicavam isto perfeitamente: ele havia sido rendido e levado até lá, o que não ocorrera com os outros dois. A segunda vítima possuia sinais de hematomas provocados por uma queda, indicando que ele havia sido levado por alguém, já a primeira não possuia absolutamente nada: Léo apostava tudo que ela estava passando no local quando foi abordada pela morte.
Foi apenas após a morte de Julio que uma câmera foi posta no local, mas isto não impediu a quarta vítima, um homem de setenta e seis anos encontrado a oitenta metros da estação. Morrera com seis tiros no abdome, a câmera não captara nada. E então havia ele, a 40 metros, com um pulso quebrado e alguns hematomas, mas nenhum tiro.
Nenhum tiro. Talvez não fossem os mesmos bandidos, afinal - ou ele de fato os havia despistado ao cair da bicicleta.
Como havia caído mesmo?

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